O CRAVO NA CONTEMPORANEIDADE
Calimerio Soares
Na virada dos séculos XIX para o XX, a fábrica parisiense de Pianos Pleyel fabricou um cravo segundo projeto elaborado por um de seus engenheiros, com a supervisão da então pianista Wanda Landowska (1879-1959). Que instrumento era esse? Talvez, uma espécie de piano com dois teclados manuais, cujas cordas se apoiavam sobre uma forte estrutura metálica e eram acionadas por saltadores com resistentes plectros de couro, por sua vez controlados por meio de pedais. Uma aberração para os tempos atuais? Possivelmente, sim. Mas, para a época em que foi construído, era considerada uma engenhosa máquina de fazer música!
Foi por meio deste instrumento que Wanda Landowska deu início à sua importante missão como musicóloga e intérprete das obras originalmente escritas para o cravo. Alunos de várias partes do mundo a procuravam como mestra do cravo em seu estúdio em Paris e, após a II Grande Guerra, também nos Estados Unidos, para onde havia procurado refúgio dos nazistas, de 1941 até o seu falecimento. Teve como alunos diversos artistas que mais tarde se tornaram famosos, como Ralph Kirkpatrick (1911-1984), Ruggero Gerlin (1899-1983) e Rafael Puyana, dentre outros.
Os compositores Manuel de Falla (1876-1946) e Francis Poulenc (1899-1963) conheceram o cravo Pleyel e para ele escreveram, dedicando obras à Wanda Landowska. O “Concerto para Cravo e Instrumentos”, de De Falla e o “Concert Champêtre”, de Poulenc são testemunhos incontestáveis desse período inicial.
Entretanto, ao longo dos anos, o crescente interesse pelo estudo da ‘música antiga’ fomentou uma vasta investigação musicológica como também organológica, trazendo de volta em pleno século XX o cravo como era conhecido nos séculos XVII e XVIII.
Porém, um exuberante período havia se passado entre o cravo Pleyel e o instrumento construído segundo os modelos históricos. Arnold Dolmetsh (1858-1940), John Challis (1907-1974), Franck Hubbard (1920-1976) e William Dowd (1922-2008) construíram excelentes cravos, em princípio com vistas aos modernos mecanismos elaborados para o bom funcionamento do instrumento. Firmas alemãs famosas como Wittmayer, Neupert, Sperrhacke também deram início à fabricação de cravos em série, com moderna tecnologia. Os registros nesses instrumentos eram controlados por meio de pedais.
Nesse mesmo período - ainda um pouco distante das investigações musicológicas que mais tarde fizeram os construtores de cravos voltarem suas atenções para a construção dos instrumentos baseados em protótipos históricos - foi que apareceram os grandes cravistas do século XX. Ainda que influenciados por Wanda Landowska, alguns dentre eles marcaram época como grandes intérpretes da música escrita para o cravo. A maneira ainda um tanto ‘pianística’ de tocar o instrumento, fazia com que, por exemplo, as Sonatas de Domenico Scarlatti (1685-1757) ganhassem um brilho todo especial. O cravista Fernando Valenti (1926-1990) notabilizou-se como um dos mais importantes intérpretes desses famosos Essercisi! Suas interpretações ao cravo, robustas e de uma elegância ímpar, eram impregnadas de coloridos matizes sonoros. Seu talentoso aluno, o cravista Igor Kipnis (1930-2002) adaptando-se mais tarde aos instrumentos históricos, deixou-nos uma discografia digna de nota.
Mas, tal maneira de tocar o cravo foi pouco a pouco sendo substituída em decorrência do surgimento dos cravos construídos segundo os modelos históricos. Nesses instrumentos não havia pedais que pudessem proporcionar ao executante uma mudança rápida de registros. O registro de 16 pés, grave e profundo, não existia nos cravos construídos segundo os modelos italianos, franceses e flamengos, continuando apenas a ser empregado em alguns cravos alemães.
Uma notável geração de cravistas deu prosseguimento à performance do instrumento, agora dentro das mais recentes orientações musicológicas. Gustav Leonhardt (nascido em 1928), cravista, organista e musicólogo, formou uma geração de excelentes intérpretes do cravo a partir da segunda metade do século XX. Dentre seus alunos, destacamos Bob van Asperen, Christopher Hogwood, Lisa Crowford, Ton Koopman, Colin Tilney e Andreas Staier.
No Brasil, o cravista e regente Roberto de Regina (nascido em 1927) construiu o primeiro cravo. Após uma temporada de aprendizado com Franck Hubbard nos Estados Unidos, passou a construir vários modelos históricos. Renomado intérprete da música para cravo dos séculos XVII e XVIII é dono de uma vasta discografia.
Vale mencionar o aparecimento de construtores de cravos no Brasil, tais como Hidetoshi Arakawa, Abel Santos Vargas e William Takahashi. Este último tem construído uma série de bons instrumentos, baseados em modelos históricos. Em razão disso, uma geração de cravistas brasileiros começou a surgir.
Mas, como ficou a situação daqueles cravos modernos, subjugados que foram por aqueles atualmente construídos segundo os modelos históricos? Foram para os museus de arte contemporânea? Permaneceram ainda em companhia de alguns dos músicos que os utilizavam no período inicial de suas atividades profissionais? Permanecem abandonados em porões de salas de concertos, em antigas escolas de música e universidades pelo mundo todo? São ainda construídos?
Acreditamos que tais instrumentos poderiam ser utilizados, principalmente, na música atual escrita para cravo. Entretanto, o problema geral se encontra - para muitos - justamente na questão estética. Correspondem tais instrumentos aos parâmetros estéticos da música escrita durante os séculos XVII e XVIII? Não, evidentemente! Seriam adequados aos preceitos estéticos da música contemporânea? Sim! Vários compositores contemporâneos têm escrito novas obras para serem executadas nos atuais cravos construídos segundo modelos históricos. Assim, aqueles primeiros cravos pioneiros permanecerão fatalmente esquecidos para todo o sempre!
Escrito por Calimerio Soares
Desde Brasil
Fecha de publicación: Julio de 2010.
Artículo que vió la luz en la revista nº 0016 de Sinfonía Virtual